quinta-feira, 22 de julho de 2010

A Barca de Pedorido (6)

Mineiros do Pejão

Conto... arrepiante!

O Maneta e o Marto são os primeiros destacados para a camada na travessa oito. Ali o calor é tal, vindo do carvão incandescente que sufoca. O ar carrega-se de tufo só sendo possível escavar no máximo duas horas seguidas. Uns carregam grossos toros de pinho que levam aos ombros para as frentes afim de escorar as marcas, parecem formigas a transportar comida para o formigueiro. Outros carregam à pá os carros de mão e despejam-nos num caleiro também em madeira, que o guia até as vagonetas. Estas os elevadores levam cheias para cima e simultaneamente trazem as vazias para baixo. Os mineiros já não são homens, são prisioneiros em trabalhos forçados, a única diferença é a ausência de corrente nos pés, mas há outras invisíveis ainda mais fortes, aquelas que os prendem ao destino fatal. De vez em quando uma lasca afiada corta-lhes as mãos então, é com urina que desinfectam as feridas, depois o pó acumula-se e faz o resto. Mais uma cicatriz negra para o resto da vida, mais uma marca, a marca do diabo. As horas avançam inclementes na profundeza do subsolo. Os homens numa azáfama constante picam e acartam o carvão de lado para lado. Com as mãos negras limpam o suor das testas. Rangem as madeiras dos quadros. Uns, serram grossos paus de pinho e vão escorando o tecto da marca. O tufo mal deixa respirar denso que é, por momentos os homens deixam de se ver uns aos outros quando o carvão se desprende do tecto e rola pela galeria abaixo. Está a correr bem, tudo indica ser um dia igual a tantos outros, a manter-se assim hoje vai dar prémio.De repente, a terra cede, toneladas de pedras desabam sobre a camada e sobre os dois mineiros, envolvendo o ambiente em ensurdecedor estrondo. O Tufo abarca a cena, o pó negro fica a pairar no ar fechando a vista do Mota o encarregado que correu apressado desde o poço mestre, com outros mineiros. A ténue luz do gasómetro não consegue rasgar semelhantes trevas. Na alma do Mota, desenha-se já a tragédia quando finalmente a nuvem se dissipa. O espectáculo que se lhe depara é dantesco e aterrador.

As pedras negras fizeram um monte enorme e no meio desta entulheira, sobressaía a mão do Maneta crispada a sair da terra num derradeiro apelo. Do Marto nem sinal, certamente ficou enterrado mais fundo, o fio de sangue que corre vindo do meio do carvão deixa adivinhar o sucedido. O Mota benze-se e começa a rezar o Pai-nosso. O tempo perdeu-se nesta hora, gastou-se por encantamento. Entretanto o Pestana chegou aflito e, ao deparar com este espectáculo horrível não consegue conter a revolta. Que crime nós cometemos para sermos tão duramente castigados!? Diga-me senhor Mota, o que foi que eles fizeram para serem sepultados vivos? Ninguém faz isto a ninguém, não há direito! Somos tratados como bichos!? Nem Deus nos ajuda, até Ele tem vergonha da gente. Abandonou-nos a esta infeliz sorte, e nós rezamos senhor Mota! Todos os dias desfiamos o terço a louvá-lo! Diga-me, onde é que ele se meteu hoje!? Olhe para ali , aquilo é sangue, sangue de gente, sangue humano, igual ao seu e ao dos filhos da mãe que nos governam. Mas o deles não corre vermelho pela terra preta, está protegido em Lisboa pela sua camarilha, a engrossar à custa da gente. Não fique ai parado, vá ao escritório telefonar para a pide, diga-lhes que sou da oposição como fez com o filho do Chico Duarte, o Manel Alegre!? Vá lá que eu não me importo, se lutar por uma vida digna é ser opositor, então eu sou com muita honra!O Mota nem sequer falou, virou as costas e foi a caminho do escritório. As lágrimas correm pelo rosto do mineiro e a comoção embargam-lhe a voz. Encostou os ombros às madeiras dos quadros e chorou como um menino enquanto erguia as mãos ao céu e pedia perdão a Deus entre soluços. Mais tarde, ele o Faísca, traziam debaixo do braço dois lençóis brancos e piedosamente embrulharam os corpos dos companheiros. Do Maneta, foi-se o ódio acalentado no peito prestes a brotar. Do Marto, foi-se a ignorância das coisas que lhe tocavam de perto. Mortos, enterrados vivos, desenterrados pelos camaradas, recolheram à morgue seminus e negros...

Autor: CONTOS “À BEIRA DO DOURO”
(Alquimista de Melres)

Mais recordações de Pedorido (Valdemar Marinheiro)
Pedorido=Duas Pontes

http://rioconversasdentrodeagua.blogspot.com/2009/12/1-2-3.html

... e o site da J.F. de Pedorido:
http://www.ciberjunta.com/pedorido.html

Até à próxima

Aquele Abraço

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